O alojamento local tem sido um verdadeiro dinamizador da economia e do turismo em Portugal, sendo uma alternativa real aos tradicionais estabelecimentos hoteleiros.
Sendo uma tendência económica recente resultante, em grande parte, da digitalização da economia, nos últimos anos têm surgido várias questões jurídicas e litígios que têm por base o referido regime, porquanto nem sempre a coexistência de alojamentos locais, em frações autónomas integrados em prédios em propriedade horizontal, com frações afetas a habitações permanentes é pacífica.
Foi nesta senda que o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) proferiu um acórdão uniformizador de jurisprudência, por forma a tentar estabilizar as decisões judiciais sobre a questão de saber se é compatível a utilização de uma fração autónoma, integrada em prédio em propriedade horizontal, como alojamento local quando no seu título constitutivo a mesma se encontra afeta a um fim de habitação.
O que é um acórdão uniformizador de jurisprudência?
Em termos muito simples, um acórdão de uniformização de jurisprudência é uma decisão proferida pelo pleno das seções cíveis do STJ que tem como objetivo, em virtude da segurança jurídica, colocar termo a uma divergência ou contradição entre acórdãos proferidos pelo próprio STJ ou pelos Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito.
É importante referir que um acórdão uniformizador de jurisprudência apenas vale entre as partes do respetivo processo, ou seja, não tem qualquer força vinculativa fora do processo em que é proferido, não tendo, naturalmente, a força de uma lei. Contudo, tem uma função orientadora para os Tribunais, que perante uma decisão do STJ sobre esta matéria terão, naturalmente, a tendência para seguir tal orientação, caso estejam perante uma situação factualmente similar.
Que decisões contraditórias estavam aqui em causa?
No acórdão recorrido seguiu-se o entendimento que a atividade de alojamento local não integra o conceito de habitação como fim dado às frações autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal. Daqui resulta que, segundo esta jurisprudência do STJ, a fração autónoma destinada a habitação não pode ser utilizada para alojamento local por essa atividade violar o fim a que se destina a fração, segundo o estatuto da propriedade horizontal e regulamento do condomínio.
No acórdão fundamento seguiu-se o entendimento que a cedência onerosa da fração a turistas, respeita o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal onde consta que determinada fração se destina a habitação, se essa fração for objeto de alojamento local. Daqui resulta que, ao contrário da jurisprudência referida acima, segundo esta jurisprudência do STJ, a fração autónoma destinada a habitação pode ser utilizada para alojamento local por essa atividade não violar o fim a que se destina a fração, segundo o estatuto da propriedade horizontal.
Pelo que se pode concluir, de facto, que existiram duas soluções completamente opostas para situações de facto análogas e no âmbito de aplicação das mesmas normas, que evidenciam uma contradição jurisprudencial relevante que justificou a intervenção do STJ através da prolação de um acórdão uniformizador de jurisprudência.
Assim, o STJ sentiu “a necessidade de clarificar se o regime do art.º 1422º, nº2 al. C), do Código Civil (CC), em conjugação com o regime do art.º 1418.º e as regras especificas do Alojamento Local impedem que se proceda a AL de fração de propriedade horizontal com indicação de destino “habitação” no título constitutivo da propriedade horizontal, eventualmente reforçado por idêntica menção no regulamento do condomínio”
Qual foi a decisão do STJ?
O STJ procurou através do presente acórdão de uniformização de jurisprudência responder à questão de saber se o exercício de atividade de alojamento local, em fração autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, constitui ou não, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a) do Código Civil (“CC”), uso diverso do fim a que essa fração é destinada e, como tal, atividade vedada aos condóminos nos termos do artigo 1422.º, n.º 2, alínea c) do CC.
O entendimento do STJ seguiu o decidido no acórdão recorrido na medida que considerou que esta posição é aquela que vai ao encontro das normas do regime civilista da proteção da propriedade condominial e dos direitos dos condóminos.
Na base deste entendimento está, entre outras razões apontadas, o facto de os conceitos de habitação e alojamento local abarcam realidades diferentes.
Por um lado, o conceito de habitação está associado ao centro de organização da vida pessoal dos habitantes, sendo as frações autónomas dos seus titulares um núcleo residencial, ou seja, o centro da vida doméstica. Por outro lado, o alojamento local acarreta, à partida, maiores perturbações: comportamentos dos destinatários diversos do habitual no dia-a-dia, nomeadamente em horários, barulhos e respeito pelo sossego dos outros, grande rotatividade de pessoas, maior desgaste das zonas comuns em virtude do aumento da utilização, etc.
Assim, a decisão de uniformização foi a seguinte: “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.”
Voto de vencido
O Juiz Conselheiro Rijo Ferreira apresentou um voto de vencido defendendo, entre outros argumentos, que a resolução de potenciais conflitos de interesses que possam existir não se deverá fazer com a declaração de uma ilicitude genérica da exploração de alojamento local em frações autónomas destinadas a habitação.
Na sua opinião, por respeito pelo princípio da proporcionalidade, os conflitos nesta matéria deveriam ser resolvidos em função da ponderação de cada caso concreto e mediante a prova de que existe um uso efetivo da fração que coloque em causa a integridade do imóvel e/ou os direitos de personalidade dos condóminos.
Para além disso, é bastante importante referir o seguinte excerto do voto de vencido onde se evidenciam as possíveis consequências do presente acórdão:
“Com efeito da jurisprudência firmada resulta a ilicitude de todas as explorações de alojamento local instaladas em frações autónomas de imóveis constituídos em propriedade horizontal destinadas a “habitação”, ainda que registadas e com título de abertura ao público, podendo qualquer condómino isoladamente exigir a cessação de tal atividade, perspectivando-se uma avalanche de processos dessa natureza e uma disrupção significativa nesse não despiciendo sector da atividade económica.”
Conclusão
Com a prolação do acórdão de uniformização de jurisprudência aqui referido, existirá, com grande probabilidade, um recurso massificado aos Tribunais por parte dos condomínios para tentar cessar, com base na jurisprudência uniformizada, a atividade de alojamento local em frações autónomas de onde resulte no seu título constitutivo a afetação ao fim de habitação.
Caberá ao legislador aferir se deverá clarificar esta questão, pela via legislativa, por forma a dotar a atividade de alojamento local de maior segurança jurídica.
Lisboa, 3 de maio de 2022.